A ÉTICA DE VIRTUDES DE ROSALIND HURSTHOUSE COMO ABORDAGEM ALTERNATIVA AO PROBLEMA DO ABORTO

1. INTRODUÇÃO

            A questão ética em torno do aborto é uma das discussões mais comuns entre acadêmicos, mas também na esfera pública, envolvendo embates políticos e religiosos. Pensando na relevância do tema e também no impasse que existe entre as posições mais comuns, o objetivo deste trabalho é apresentar a alternativa da ética de virtudes de Rosalind Hursthouse para o problema ético do aborto.

            Para isso, iniciaremos com uma pequena exposição do que é a Ética de Virtudes, sem a intenção de fazer isso de modo exaustivo. O objetivo nesta seção é elaborar uma breve introdução, abordando rapidamente alguns conceitos essenciais da ética de virtudes, bem como introduzir a autora a ser abordada neste trabalho. Em seguida, faremos um resumo geral da teoria ética de Rosalind Hursthouse, como forma de situar sua proposta a respeito da questão do aborto.

            Na penúltima seção, chegando ao objetivo principal deste trabalho, apresentaremos as propostas de Hursthouse a respeito de sua teoria de virtudes aplicada ao problema do aborto, procurando estabelecer uma alternativa às considerações que comumente são abordadas. Para esta seção, utilizaremos principalmente o artigo Teoria da Virtude e Aborto, originalmente publicado em 1991, na revista Philosophy and Public Affairs.

            Por último, consideraremos uma das questões levantadas pelos filósofos Laurence Bonjour e Ann Baker, no livro Filosofia: textos fundamentais comentados, com relação à argumentação de Hursthouse sobre o status do feto e a “santidade da vida humana”. O objetivo desta seção é discutir se a questão levantada por Bonjour e Ann Baker é de fato coerente.           Consideramos que a relevância desse trabalho se encontra exatamente no fato de ser uma abordagem alternativa ao problema do aborto, bem como, pela sua tentativa de encarar uma possível objeção ao trabalho da filósofa Rosalind Hursthouse.

2. A ÉTICA DE VIRTUDES

A ética de virtudes é uma abordagem normativa da ética em que as virtudes ou o caráter moral são enfatizados, ao invés de focar nos deveres e regras, como nas éticas deontológicas, ou nas consequências de determinadas ações, como no caso das éticas consequencialistas (HURSTHOUSE; PETTIGROVE, 2018, on-line).

Os proponentes da chamada ética de virtudes, geralmente, são aqueles que consideram que a moralidade do período moderno fracassou. Essas tentativas de fundamentar a moral que falharam estavam justificadas na razão, na fé ou nas emoções e sentimentos, enquanto que a proposta dos eticistas das virtudes é uma espécie de retorno à ética de Aristóteles, procurando reabilitá-la. Muitos proponentes de uma ética de virtudes renunciam a moral da modernidade em razão de seu deontologismo, isto é, “da insistência em obrigações, em direitos etc.”, ao invés de uma preocupação com aquilo que é “valioso” e na “vida boa” (DALL’AGNOL, 2019, p.137-138).

Como vimos, a ética de virtudes é compreendida como uma “abordagem onde o conceito de virtude torna-se ‘central’ ou ‘primordial’ (PEREIRA, 2020, p.94). A centralidade da virtude é o ponto distintivo da teoria ética das virtudes, é a principal característica que a distingue das demais correntes éticas normativas (deontológicas e consequencialistas) (HURSTHOUSE; PETTIGROVE, 2018, on-line). Contudo, a questão da definição de “virtude” é um problema que essa corrente ética enfrenta. Rafael Pereira, em seu artigo A ética das virtudes e a distinção entre moralidade e felicidade, resume algumas das posições entre filósofos dessa corrente ética acerca do que é virtude:

Aristóteles e alguns autores ligados à Ética das Virtudes contemporâneas, como Rosalind Hursthouse, entendem a virtude em função de sua contribuição para a vida boa ou florescimento humano. Outros, ligados a Hume, a entendem a partir da utilidade social. Outros ainda, como Michael Slote, partem da visão do senso comum de quais traços são admiráveis (2020, p.94).

Em Aristóteles, na ética clássica, a ideia de virtude (excelência) remete a um hábito ou uma disposição racional. Para o filósofo estagirita, a virtude é aquilo que permite ao ser humano realizar bem suas tarefas, é “o hábito que torna o homem bom” (ABBAGNANO, 2007, 1003). A virtude, afirma Aristóteles, é uma “disposição de caráter” do tipo que faz com que a sua própria função seja bem realizada:

Deve-se observar que toda virtude não só coloca em bom estado a coisa de que ela é virtude, mas também lhe permite realizar bem sua função, por exemplo, a virtude do olho torna o olho e sua função igualmente perfeita, pois é pela virtude do olho que a visão existe em nós como convém. Do mesmo modo, a virtude do cavalo torna o cavalo ao mesmo tempo perfeito em si mesmo e bom para a corrida, para levar o cavaleiro e fazer face ao inimigo (2015, p.49).

Portanto, podemos dizer que a virtude na ética de Aristóteles é uma disposição de caráter “cultivada pelo desempenho contínuo de bons hábitos” (DALL’AGNOL, 2019, p.118). Nas próprias palavras do estagirita: “a virtude é uma disposição de caráter relacionada a uma escolha deliberada” (ARISTÓTELES, 2015, p.51).

Outro ponto interessante a ser observado, é o de que a virtude parece possuir uma função (teleologia), a saber, a de tornar bom o ser humano e as suas ações (ARISTÓTELES, 2015, p.49). Alasdair MacIntyre, também proponente da ética de virtudes, ao comentar os escritos de Aristóteles, afirma que “as virtudes são precisamente as qualidades cuja posse permite ao indivíduo atingir a eudaimonia e a falta delas frustra seu progresso rumo a esse telos” (2001, p.253).

Contudo, as virtudes não são um meio para um fim (a vida boa), pois a vida boa é uma “vida humana completa” e “o exercício das virtudes é uma parte necessária e fundamental de tal vida, e não um mero exercício preparatório para garantir tal vida” (MACINTYRE, 2001, p.254). Como vimos, a filósofa contemporânea Rosalind Hursthouse, foco deste trabalho, demonstra essa mesma visão: a de uma virtude cuja função é a vida “ e o florescimento humano” (PEREIRA, 2020, p.94).

3. A ÉTICA DE VIRTUDES DE ROSALIND HURSTHOUSE

Rosalind Hursthouse defende uma ética de virtudes, denominada por ela mesma, de “neoaristotélica”, e está entre os grandes proponentes da ética de virtudes contemporânea (BONJOUR; BAKER, 2010, p.493). Na teoria da filósofa, a virtude é uma disposição de caráter, um “excelente traço de caráter”, “é uma disposição, bem arraigada em seu possuidor […], para perceber, esperar, valorizar, sentir, desejar, escolher, agir e reagir de certas maneiras características” (HURSTHOUSE; PETTIGROVE, 2018, on-line, tradução nossa).[1]

Assim como Aristóteles, Hursthouse entende que a virtude não deve ser entendida apenas como um hábito, apesar de ser adquirida “por uma contínua prática de ações” boas (DALL’AGNOL, 2019, p.118). Ter uma virtude, para a filósofa neozelandesa, é “ser um certo tipo de pessoa com uma certa mentalidade complexa” (HURSTHOUSE; PETTIGROVE, 2018, on-line, tradução nossa). Para ser virtuoso, não basta praticar ações virtuosas. Uma ação virtuosa pode ser realizada por uma razão egoísta, por exemplo. Ações virtuosas praticadas por um agente virtuoso são, na verdade, reflexos “de seu ponto de vista” sobre as virtudes (HURSTHOUSE; PETTIGROVE, 2018, on-line, tradução nossa). Em suma, a virtude é um “estado de caráter”, um “modo de ser” (DALL’AGNOL, 2019, p.118).

Hursthouse defende que a ética de virtudes, ao contrário do que muitos consequencialistas e deontologistas afirmam, pode ser uma ética normativa. Isto é, pode fornecer critérios para decidir o que é uma ação correta ou errada em determinadas situações (BONJOUR; BAKER, 2010, p.493).

Para uma ação correta, Hursthouse (2010a, p.495) fornece a seguinte definição: “uma ação é correta sse é aquilo que um agente virtuoso caracteristicamente faria (ou seja, agir com caráter) naquelas circunstâncias”. Para uma ação errada ou incorreta, temos que: “uma ação é errada sse é o que um agente vicioso caracteristicamente faria naquelas circunstâncias” (HURSTHOUSE apud VAN ZYL, 2013, p.175, tradução nossa).[2]

Uma das objeções que essa definição de Hursthouse recebe, é a de que ela não nos diz nada a respeito do que fazer, pois seria necessário definir o que é um agente virtuoso. Contudo, como afirma a filósofa, as definições deontológicas e consequencialistas (utilitaristas) também carecem desse tipo de “complemento”:

O utilitarismo deve especificar o que conta como as melhores consequências e a deontologia o que conta como uma regra moral correta, produzindo uma segunda premissa antes que qualquer orientação seja dada. De modo similar, a ética da virtude deve especificar quem deve contar como um agente virtuoso. Até agora, as três estão na mesma posição (HURSTHOUSE, 2010a, p.495).

Sendo assim, para especificar o que seria um agente virtuoso, Hursthouse (2010a, p.495) fornece uma premissa complementar para a definição de ação correta: “um agente virtuoso é alguém que age virtuosamente, ou seja, alguém que tem e exercita as virtudes”. Além disso, adiciona uma segunda premissa para determinar o que são virtudes: “uma virtude é um traço de caráter que….” (HURSTHOUSE, 2010a, p.495).

Desse modo, a ética de virtudes pode fornecer um padrão para a ação correta, desde que apresente uma lista com uma enumeração de virtudes para a segunda premissa, assim como algumas variações de éticas deontológicas fazem. Hursthouse também afirma que, outra alternativa, seria lançar mão de uma definição de David Hume acerca do que é virtude, somada a um complemento baseado em Aristóteles. De acordo com a filósofa,

podemos, não de forma implausível, interpretar o Hume da segunda Investigação como defendendo uma ética da virtude. De acordo com ele, uma virtude é um traço de caráter (dos seres humanos) que é útil ou agradável ao seu possuidor ou aos outros (um “ou” inclusivo nos dois casos). O complemento padrão neoaristotélico afirma que uma virtude é um traço de caráter do qual um ser humano precisa para a eudaimonia, para bem-suceder ou viver bem (HURSTHOUSE, 2010a, p.495).

Portanto, a ética de virtudes, segundo Hursthouse, também pode ser uma ética normativa que, através da enumeração de virtudes, ou de uma definição nos moldes de David Hume, fornece um critério para a ação correta.

4. A PROPOSTA DE HURSTHOUSE PARA O PROBLEMA ÉTICO DO ABORTO

Segundo Justin Oakley, Rosalind Hursthouse propõe uma alternativa inovadora para a discussão sobre o aborto: “em vez de tentar ‘resolver o problema do aborto’, Hursthouse procurou aumentar nossa compreensão da ética de virtudes ilustrando como isso nos faria pensar sobre uma questão específica” (2013, p.208-209).

As considerações de Rosalind Hursthouse a respeito do problema do aborto parecem considerar como um de seus pontos de partida a seguinte constatação: existe um impasse na discussão ética do aborto entre as duas considerações mais recorrentes (e concorrentes), a saber, a que discute o status do feto e a que advoga pelos direitos das mulheres. Para Hursthouse, na abordagem da ética de virtudes ao problema do aborto, essas duas considerações se tornam “fundamentalmente irrelevantes” (2010b, p.504).

Sobre os direitos das mulheres, Hursthouse afirma que é irrelevante para a ética de virtudes se uma mulher tem ou não o direito moral para abortar, pois isso não diz nada a respeito da questão: “Fazendo um aborto nessas circunstâncias, estaria o agente agindo de forma virtuosa ou viciosa ou nenhuma delas?” (2010b, p.504). Além disso, possuir o direito a realizar determinada ação não impede que, em determinadas situações, essa ação seja ruim ou danosa:

supondo apenas que as mulheres têm esse direito moral [de interromper uma gravidez], nada se depreende dessa suposição sobre a moralidade do aborto, de acordo com a teoria da virtude, uma vez que seja observado (em geral, não com referência particular ao aborto) que no exercício de um direito moral eu posso fazer algo cruel, insensível, egoísta, volúvel, arrogante, estúpido, inconsiderado, desleal, desonesto – isto é, eu posso agir viciosamente (HURSTHOUSE, 2010b, p.504).[3]

Com relação ao status do feto, isto é, se o feto “é o tipo de coisa que pode ou não ser morta inocente ou justificadamente” (HURSTHOUSE, 2010b, p.503), Hursthouse vai dizer que, à primeira vista, parece relevante saber o status do feto, pois “a virtude envolve conhecimento, e parte desse conhecimento consiste em ter a atitude correta em relação às coisas”, no sentido de ter uma atitude ou um conhecimento “exato, verdadeiro” (2010b, p.504). Entretanto, a filósofa também entende que um conhecimento requerido para agir virtuosamente não pode ser algo sofisticado filosoficamente, próprio de acadêmicos. Isto é, não pode ser algo “recôndito” (HURSTHOUSE, 2010b, p.504). Por consequência, Hursthouse (2010b, p.504) diz que isso nos leva a uma conclusão que ela chama de “assustadora”: “que o status do feto […] não é, de acordo com a teoria da virtude, simplesmente relevante para a correção ou não do aborto”.

Contudo, o status do feto pode ser relevante em algum sentido, mas será apenas “no sentido em que os fatos biológicos familiares são relevantes”. Esses “fatos biológicos familiares” são entendidos por Hursthouse como

os fatos com que a maioria das sociedades humanas estão e têm estado familiarizadas – que, em geral (mas não invariavelmente), a gravidez ocorre como resultado de intercurso sexual, que ela dura nove meses durante os quais o feto cresce e se desenvolve, que ela em geral termina com o nascimento de um bebê e assim é como todos nós viemos a ser (2010b, p.504-505).

Aqui, Hursthouse parece “apelar” para uma espécie de senso comum a respeito da biologia. Isto é, coisas que “todos” sabem a respeito do modo como os bebês são concebidos e vêm a nascer. Afirmar a relevância dos “fatos biológicos familiares”, contudo, não é o mesmo que dizer algo sobre o status do feto:

Atrelar relevância ao status do feto, no sentido em que a teoria da virtude afirma que não é relevante, é estar tomado pela convicção de que nós devemos ir além dos fatos biológicos, derivando algum tipo de conclusão a partir deles, tal como a de que o feto tem direitos ou não é uma pessoa ou algo similar (HURSTHOUSE, 2010b, p.505).

Ou seja, poderíamos dizer que afirmar a relevância desses fatos familiares relacionados à vida é aceitar as informações que temos e que são possíveis de serem acessadas, e rejeitar a discussão, por exemplo, sobre o momento em que um feto se torna uma pessoa ou se um feto possui direitos. A questão, portanto, não é sobre o status do feto, mas, sim, “como esses fatos [biológicos familiares] aparecem no raciocínio prático, nas ações e paixões, nos pensamentos e reações, do virtuoso e do não virtuoso?”. Isto é, “qual é a marca de ter a atitude correta em relação a esses fatos e o que manifesta ter a atitude errada diante deles?” (HURSTHOUSE, 2010b, p.505).

Deste modo, considerar os fatos biológicos familiares envolvidos no aborto, que incluem, entre outras coisas, o fato de que uma vida humana estar sendo interrompida, e nos levam a concluir que uma gravidez não é apenas uma entre as condições físicas comuns, faz dessa questão algo relevante e sério, já que envolve e “conecta todos os nossos pensamentos sobre a vida humana e a morte, a paternidade e as relações familiares” (HURSTHOUSE, 2010b, p.505).

Portanto, a questão central para Rosalind Hursthouse, como vimos, é se “fazendo um aborto nessas circunstâncias, estaria o agente agindo de forma virtuosa ou viciosa ou nenhuma delas?” (2010b, p.504). Parafraseando, poderíamos dizer que a pergunta a ser feita diante de um dilema como o do aborto, seria: “O que um agente virtuoso caracteristicamente faria diante da questão do aborto?”.

Hursthouse aborda ainda muitas outras questões em seu artigo Teoria da Virtude e Aborto que não caberiam aqui. Contudo, entendemos que seja interessante mencionar, em razão de nosso propósito com este trabalho, que a filósofa neozelandesa defende que, apesar de o aborto ser necessário e correto em algumas situações, como no caso do dilema entre manter a gravidez ou salvar a vida da mãe, algum mal foi produzido “em virtude do fato de que uma vida humana tem sido abreviada” (HURSTHOUSE, 2010b, p.508). Nesse caso, deveríamos perguntar pela ação do agente virtuoso, mas em qualquer escolha que ele faça, ainda resultará numa ação que não poderá ser considerada boa, em virtude de seu resultado ruim.[4]

5. HÁ UMA CONTRADIÇÃO EM HURSTHOUSE?

Laurence Bonjour e Ann Baker levantam algumas questões sobre a abordagem ética de Hursthouse para o problema do aborto. Uma delas diz o seguinte:

Hursthouse diz que se o feto é ou não uma pessoa é irrelevante para a questão do aborto e que somente os fatos biológicos mundanos são relevantes para o que uma pessoa virtuosa faria quando ela tivesse de enfrentar tal escolha. Contudo, ela também fala da “santidade da vida humana” (com a sugestão de que isso se estende aos fetos) e do mal moral envolvido em interromper a vida humana num tal caso, o qual parece envolver um apelo a mais do que meramente fatos biológicos sobre o feto. Há alguma forma de reconciliar essas duas concepções? (BONJOUR; BAKER, 2010, p.508).

            Basicamente, o que Bonjour e Baker estão indicando, é que parece haver uma contradição entre a afirmação de Hursthouse de que a questão do status do feto é irrelevante para a discussão do aborto na ética de virtude e a afirmação de que interromper uma vida humana é errado (o que inclui o feto). Seria uma contradição, pois para afirmar que o feto é uma vida humana, segundo Bonjour e Baker, seria necessário mais do que apenas “fatos biológicos familiares”, os quais são, de acordo com Hursthouse, suficientes para essa questão.

            Entendemos que, apesar de parecer uma solução simples, a resposta para essa indagação parece estar envolvida em uma questão de vocabulário, algo que a própria questão levantada por Bonjour e Baker deixa evidenciado. Isso porque, ao falar sobre o status do feto, Hursthouse (2010b) indica que está se referindo à discussão comum de se o feto “é o tipo de coisa que pode ou não ser morta inocente ou justificadamente” (p.505), o que geralmente se traduz em perguntar se o feto é “ou não é uma pessoa” (p.505). E, segundo nos parece, para decidir sobre essa questão específica, isto é, se o feto é ou não uma pessoa, seria de fato necessário “envolver um apelo a mais do que meramente fatos biológicos sobre o feto”, com afirmam Bonjour e Baker. Contudo, quando Hursthouse sugere que abortar um feto é errado por ser uma interrupção de uma vida humana, ela não está atribuindo o status de pessoa ao feto.

            O que estamos tentando dizer é que, para afirmar que o feto se trata de “uma vida humana”, como Hursthouse faz, não é necessário mais do que os fatos meramente biológicos, pois afirmar que um feto é uma vida humana não é mesmo que atribuir-lhe um status de pessoa. Ao que tudo indica, e segundo nos parece, dizer que um feto é uma vida humana está de acordo com os “fatos biológicos familiares”, isto é, os “fatos com que a maioria das sociedades humanas estão e têm estado familiarizadas” (HURSTHOUSE, 2010b, p.504). Seria possível dizer que é senso comum chamarmos um embrião de “feto humano”, por exemplo.

            Portanto, entendemos que Hursthouse provavelmente lançou mão de termos diferentes (pessoa e vida humana) de maneira proposital, como quem deseja reafirmar a ideia “familiar” de que um bebê em formação se trata de uma vida do mesmo tipo que a dos demais seres humanos.[5] E que, dessa forma, parece ter evitado o tipo de questão que foi levantada por Bonjour e Baker.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando a dificuldade da questão ética do aborto, sua relevância e também o impasse que envolve tal discussão, acreditamos que a abordagem da teoria de virtudes defendida por Rosalind Hursthouse tem potencial para se colocar como uma alternativa consistente entre as teorias utilitaristas ou deontologistas a respeito do assunto. Esse potencial, de acordo com o que foi apresentado aqui, se encontra exatamente no fato de tornar as duas principais “armas” argumentativas em questões irrelevantes, sem deixar de tratar o assunto com a seriedade que lhe cabe.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2015.

BONJOUR, Laurence; BAKER, Ann. Filosofia: textos fundamentais comentados. Porto Alegre: Artmed, 2010

DALL’AGNOL, Darlei.  Ética. Florianópolis: FILOSOFIA/EaD/UFSC, 2019.

HURSTHOUSE, Rosalind. Ética Normativa da Virtude. In: BONJOUR, Laurence; BAKER, Ann. Filosofia: textos fundamentais comentados. Porto Alegre: Artmed, 2010a. p.493-502.

HURSTHOUSE, Rosalind. Teoria da Virtude e Aborto. In: BONJOUR, Laurence; BAKER, Ann. Filosofia: textos fundamentais comentados. Porto Alegre: Artmed, 2010b. p.503-508.

HURSTHOUSE, Rosalind; PETTIGROVE, Glen. Virtue Ethics. In: ZALTA, Edward N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Winter 2018 Edition. Stanford: Metaphysics Research Lab, Stanford University, 2018. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/win2018/entries/ethics-virtue&gt;. Acesso em: 22 set. 2021.

MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude: um estudo em teoria moral (Bauru, SP: EDUSC, 2001.

OAKLEY, Justin. Virtue ethics and bioethics. In: RUSSEL, Daniel C. The Cambridge Companion of Virtue Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. p.197-220.

PEREIRA, Rafael Rodrigues. A ética das virtudes e a distinção entre moralidade e felicidade. Revista Portuguesa de Filosofia, v.76 (1), p.94-124, 2020. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/26915597&gt;. Acesso em: 21 set. 2021.

VAN ZYL, Liezl. Virtue ethics and right action. In: RUSSEL, Daniel C. The Cambridge Companion of Virtue Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. p.173-196.


[1] “A virtue is an excellent trait of character. It is a disposition, well entrenched in its possessor—something that, as we say, goes all the way down, unlike a habit such as being a tea-drinker—to notice, expect, value, feel, desire, choose, act, and react in certain characteristic ways”

[2]  “An act is wrong iff it is what a vicious agent would characteristically do in the circumstances”

[3] Grifo nosso.

[4] Hursthouse acredita que um agente virtuoso não pode cometer uma ação correta diante de um dilema trágico (com duas ou mais alternativas que causam dano, por exemplo). Por isso, em seu On Virtue Ethics, Hursthouse adiciona uma qualificação “extra” à sua definição inicial de ação correta: “…exceto para dilemas trágicos, em que uma decisão é correta sse for o que um agente [virtuoso] decidiria, mas a ação decidida pode ser terrível demais para ser chamado de ‘certo’ ou ‘bom’.” (apud VAN ZYL, 2013, p.177, tradução nossa).

[5] Essa visão parece algo como um “biocentrismo humanista”, em que o que está em discussão para determinar se a interrupção de uma gravidez é correta ou não, é se um feto é uma vida humana. A questão de sua pessoalidade se torna irrelevante aqui.

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